Com este título realizou-se, a 17 de abril de 2013, na Faculdade de Teologia da Universidade Católica em Lisboa, um colóquio que dava a conhecer a vida e a obra da monja beneditina Hildegarda de Bingen (1098-1179), que o Papa Bento XVI proclamara Doutora da Igreja Universal a 7 de outubro de 2012. A partir do contexto histórico, teológico e espiritual do século XII, diversos estudiosos desvendaram a aventura espiritual desta mulher singular, a quem foram concedidos dons extraordinários, que ela desenvolveu, tornando-se uma personalidade plurifacetada: escritora, música, mulher de ciência, missionária e pregadora.
Sendo há séculos venerada como santa, o Papa Bento XVI canonizou-a por equivalência proclamada em 10 de maio de 2012, estendendo o culto litúrgico a toda a Igreja, e meses depois declarou-a Doutora da Igreja. Na Carta Apostólica Santa Hildegarda de Bingen, Monja Professa da Ordem de São Bento, é proclamada Doutora da Igreja universal, o Papa destacou o valor da sua vida e obra para o tempo presente: “Verdadeiramente, no horizonte da história, esta grande figura de mulher define-se com clareza límpida por santidade de vida e originalidade de doutrina. Aliás, como para cada experiência humana e teologal autêntica, a sua importância supera decididamente os confins de uma época e de uma sociedade e, não obstante a distância cronológica e cultural, o seu pensamento manifesta-se de atualidade perene.”
Hildegarda de Bingen, vida e obra de atualidade perene
Hildegarda nasceu em 1098 em Bermersheim, de pais de linhagem nobre e ricos proprietários de terra. Consagrada a Deus como oblata, aos oito anos foi entregue aos cuidados de Jutta von Sponheim, uma jovem aristocrata que decidira abraçar a vida de clausura. Em 1112, aos catorze anos, esta menina de saúde frágil e muito suscetível aos fenómenos da natureza, foi encerrada solenemente com Jutta, seis anos mais velha e sua mestra, na cela de clausura situada junto ao mosteiro dos monges de Disibodenberg. Este lugar de clausura viria a transformar-se (1112-1115) num pequeno mosteiro de monjas beneditinas. Com a morte de Jutta em 1136, Hildegarda foi chamada a suceder-lhe como magistra. Fundamento da sua espiritualidade, a regra beneditina põe o equilíbrio espiritual e a moderação ascética como caminhos para a santidade. Dentro dos muros claustrais, no cuidado das suas monjas, Hildegarda promove a vida comunitária, a cultura e a liturgia.
Aos quarenta e dois anos, Hildegarda recebe de Deus a ordem de pôr por escrito as suas visões, expressão da sua espiritualidade carismática. Começa a escrever Conhece os caminhos (Scivias). O seu olhar sobre o mundo e sobre o ser humano é iluminado pela luz do mistério de Cristo, Verbo incarnado: é através deste mistério que ela vê a criação e a revelação original e a ação de Deus através dos tempos.
Esta mulher, “pobrezinha forma feminina”, como a si própria se refere, conta ao monge Volmar, seu secretário e conselheiro espiritual, as visões que tem desde a infância: aos três anos viu pela primeira vez a “Luz viva”, e a partir dos cinco teve visões. As miniaturas que acompanham a obra escrita, em que as interpreta, atestam a poderosa originalidade das suas visões, ricas e precisas, próprias de uma época de grande criatividade, e que ainda hoje surpreendem. Mas esta monja beneditina, para quem a humildade era a primeira das virtudes, em 1146-1147 escreve a Bernardo de Claraval, perplexa e angustiada, para que ele avalie se os seus escritos e miniaturas vêm verdadeiramente de Deus. O monge cisterciense, na resposta à sua carta, tranquiliza-a quanto à ortodoxia dos fragmentos da obra que lhe havia enviado.
Em 1147-1148, durante o Sínodo de Treves, realizado com vista ao Concílio de Reims, o Papa Eugénio III envia a Disibodenberg uma comissão com o intuito de provar a veracidade das visões da abadessa. Durante o sínodo, o próprio Papa lê em voz alta textos desse primeiro tratado teológico e responde a Hildegarda, exortando-a a que escreva as suas visões e confirmando com a sua autoridade tão excecional faculdade.
Correspondência com os mais altos representantes da Igreja e do Estado
Gera-se então uma intensa correspondência entre Hildegarda e personalidades relevantes do Ocidente, tanto eclesiásticas como políticas. No seu abundante espólio, conservam-se mais de quatrocentas cartas, em que Hildegarda condensa em breves enunciados as situações e dúvidas que lhe são dirigidas, transpondo-as para um plano superior e observando-as à luz da eternidade. A resposta vem sempre do reflexo da “Luz viva”, ou da “Sapiência”, e, consoante as situações concretas, Hildegarda de Bingen ensina, encoraja, adverte, repreende e ameaça com castigos divinos.
A correspondência da abadessa dirige-se a papas, imperadores, reis e príncipes reinantes, a cardeais e bispos, a abades e abadessas, a padres, monges e leigos. As cartas trocadas com o Papa Eugénio III revestem-se de especial interesse, dado que, desde o Sínodo de Treves, relações de confiança filial ligam Hildegarda ao papa. Tão vasta correspondência prova que a abadessa beneditina, para além da sua íntima experiência mística, está atenta aos desenvolvimentos do seu conturbado século e toma parte nos acontecimentos da Igreja e do Estado.
Mulher de força e ação, fundadora de mosteiros
Uma visão faz saber a Hildegarda que deve deixar Disibodenberg e instalar-se com as suas monjas em Rupertsberg, situado frente a Bingen. Perante a forte oposição do abade e dos monges à sua saída, Hildegarda não desiste e, mediante a influência da Marquesa Richardis von Stade, mãe de uma das monjas, consegue a autorização do Bispo de Mogúncia. Assim, em 1150, a abadessa beneditina estabelece-se com vinte das suas monjas no mosteiro de Rupertsberg. Quinze anos passados, em 1165, funda um novo mosteiro em Eibingen, que visita duas vezes por semana.
Mulher de ciência, a natureza revela-lhe as virtudes curativas
De 1151 a 1158 Hildegarda dedica-se aos seus escritos sobre física e medicina. Na obra Causas e curas pesquisa as enfermidades e indica os meios naturais para a sua cura. A monja explica desta forma o tema das relações entre o universo e o ser humano: a lesão ocasionada pelo pecado manifesta-se neste pela doença e pela morte; a solução para essa dissonância está em Cristo, médico dos enfermos, saúde do mundo.
Além dos seus escritos científicos, que abarcam a história natural, a cosmologia, a física, a medicina, algumas das suas obras maiores tratam de teologia e filosofia, música e poesia. Esta mulher de tantos dons e carismas faz parte de uma época de globalidade, manifestando um sentido particularmente desenvolvido do cosmos e da unidade de todo o universo. Associa aos dons proféticos um interesse ímpar pelo ser humano, homem e mulher, imagem de Deus e ocupando o centro do universo criado. Vê o ser humano como unidade de corpo e alma, em que a corporeidade não é um peso do qual se libertar, pois até quando é débil e frágil ensina ao homem o sentido da criaturalidade e da humanidade, protegendo-o da arrogância.
Alegria e júbilo: toda a criação é uma sinfonia do Espírito Santo
Pela mesma altura, Hildegarda compõe a obra Sinfonia harmoniosa das revelações celestes, na qual se incluem o drama Ordinário das virtudes e Poemas. Para prover às necessidades litúrgicas da vida no mosteiro beneditino de Rupertsberg, compôs diversas peças eucológicas: antífonas, responsórios, hinos e sequências. As suas composições são poemas e melodias para louvor de Deus e da Virgem Maria, dos apóstolos, santos e anjos ao longo do ano litúrgico. Desde a última visão de Conhece os caminhos (Scivias) o seu talento musical manifesta-se com exuberância e aparece depois noutros escritos.
No sentir da sua alma mística, Hildegarda apercebe-se dos acordes das três Pessoas divinas e canta-os. O ser humano é aquela criatura que, com a sua voz, como Adão antes da queda, pode responder à voz do Criador. Para ela, a alma humana é uma harmonia e uma sinfonia. Naturalmente, as suas composições musicais refletem o estilo da sua época, mas a sua criatividade preenche-as de imagens que convocam todos os sentidos: audição, olfato, visão, tato e paladar. Esta profusão de imagens, obtida pela utilização de um vocabulário sensorial nos seus cânticos, faz com que o latim simples, mesmo elementar desta monja, que se diz “indouta”, ganhe uma grande liberdade de composição. Também aqui o seu “desconhecimento da Gramática” é suplantado pela familiaridade com as Sagradas Escrituras e com os comentários dos Padres da Igreja, e em particular com o imaginário do amor místico do Cântico dos Cânticos e da liturgia do Apocalipse.
Os grandes tratados teológicos
São três as suas obras teológicas. Conhece os caminhos (Scivias), 1141-1151, cujos primeiros capítulos, como acima referido, foram lidos pelo Papa Eugénio III no Sínodo de Treves, em 1145, é uma exortação a que se conheçam e sigam os caminhos que levam a Deus. Desenvolvida em três partes, Hildegarda começa por ver a “Luz viva” e o Reino de Deus, a origem do mal, o pecado original e as suas nefastas consequências; na segunda parte fala da redenção, portanto da incarnação do Filho de Deus, da Igreja e do seu contributo para a salvação, os sacramentos; na terceira parte retoma os temas anteriores partindo de Adão até aos tempos da Salvação e ao Juízo final, em que a criação encontrará a ordem e o mal será punido e afastado, deixando só espaço para a alegria e para o canto. O Livro dos méritos da vida, 1158-1163, é um tratado dialético entre os vícios e as virtudes.
No Livro das obras divinas, 1163-1174, a autora sintetiza os conceitos teológicos, os conhecimentos científicos e as especulações sobre o funcionamento da mente do homem e da estrutura do cosmo. O ponto de partida e de chegada das suas análises antropológicas e cosmológicas é a atividade criadora de Deus. Fé e razão estão em consonância. O seu olhar sobre o mundo e sobre o ser humano é iluminado pela luz do mistério de Cristo, Verbo incarnado: é através deste mistério que ela vê a criação e a revelação original e a ação de Deus através dos tempos. É nesta obra que Hildegarda representa o ser humano no centro de um círculo (a perfeição), que Leonardo da Vinci (1452-1519) virá a desenhar.
Quatro viagens de pregação em praças públicas e catedrais
Mesmo com votos de clausura, esta monja beneditina desenvolve um importante ministério público, pregando verdadeiras cruzadas espirituais contra as grandes heresias do seu tempo, nomeadamente os cátaros (1164). Mas com igual veemência, porque investida de uma missão profética, critica com desenvoltura e coragem os vícios daqueles que, sendo os guardiões da Igreja, a negligenciam e desfeiam. Perante a urgência da reforma da Igreja, que tanto anseia o Papa Eugénio III e outros do seu tempo, a abadessa beneditina insurge-se contra a tibieza, a acomodação e a cupidez de bispos e padres. Compreende-se o seu ânimo missionário e a sua indignação ao ler-se a sua visão da Igreja, no ano de 1170, estando doente e acamada: uma belíssima mulher cuja figura se elevava da terra ao céu, vestida de seda branca com manto de pedras preciosas, calçada de ónix; mas o seu rosto estava coberto de poeira, o vestido rasgado, o manto sem brilho, o calçado manchado.
De 1158 a 1171, Hildegarda, a “Sibila do Reno”, sofre duas graves e prolongadas crises da sua enfermidade, mas tais padecimentos não a impedem de realizar as quatro viagens missionárias pelas cidades do Reno, pregando tanto a clérigos como a leigos. Com a influência das correntes de espiritualidade mariana, em pleno florescimento na Alta Idade Média, o papel da mulher na vida da Igreja foi sendo progressivamente olhado por alguns eclesiásticos de forma mais positiva, levando ao lento desvanecer da visão da mulher associada ao mal e ao caos. Por exemplo, o Papa Alexandre III escrevia, em 1173, numa carta ao mestre da Ordem de Santiago: “Se Nosso Senhor quis nascer de uma mulher não foi apenas para os homens, mas também para as mulheres”.
Para finalizar, as palavras da Carta Apostólica do Papa Bento XVI referindo Hildegarda de Bingen como Doutora da Igreja universal: “O ensinamento da santa monja beneditina coloca-se como uma guia para o Homo viator. A sua mensagem é extraordinariamente actual no mundo contemporâneo, de modo especial sensível ao conjunto dos valores propostos e vividos por ela. Pensamos, por exemplo, na capacidade carismática e especulativa de Hildegarda, que se apresenta como um incentivo vivaz à pesquisa teológica; na sua reflexão sobre o mistério de Cristo, considerado na sua beleza; no diálogo da Igreja e da teologia com a cultura, a ciência e a arte contemporânea; no ideal de vida consagrada, como possibilidade de realização humana; na valorização da liturgia, como celebração da vida; na ideia de reforma da Igreja, não como estéril mudança das estruturas, mas como conversão do coração; na sua sensibilidade pela natureza, cujas leis devem ser tuteladas e não violadas.”